Por Lara Maia
David Small, um seu brilhante trabalho, demonstra o seu comovente relato autobiográfico. De uma forma sincera e poética ele narra a sua história que começa quando o autor tem seis anos de idade e em poucas cenas já nos mostra a relação conturbada do autor com os pais. A relação dessa família é a base de ressentimentos e mágoas, mostrando o desenvolvimento de uma criança em uma casa disfuncional, em que o silêncio predomina no ambiente.
Cicatrizes é uma leitura impactante que retrata a vida de uma criança criada por uma mãe infeliz em sua própria existência e um pai que a usa como cobaia em testes de raio-x. Apesar de uma infância marcada por conflitos, sua imaginação, desejo de brincar e descobrir o mundo não são suprimidos. As dores se metamorfoseiam em imagens na mente e no papel, tornando-se expressões de sua criatividade.
Quando Small faz 14 anos ele é submetido a uma cirurgia, em que ele acreditava ser apenas para a retirar um nódulo do pescoço. Enquanto o jovem acreditava ser tratar de um procedimento simples e inofensivo, ele acorda no pós-operatório e fica sabendo que uma das suas cordas vocais fora removida, deixando o menino com a fala bem debilitada. Mas tarde, Small descobre que havia sido submetido ao tratamento de um câncer. O garoto descobre isso sozinho e sem amparo dos pais.
Sendo ilustrador de livros infantis, era natural que Small optasse por narrar sua história através de uma Graphic Novel. “Cicatrizes” é repleto de ilustrações, superando em quantidade os diálogos ou textos, e essa abordagem funciona de maneira excepcional. Não somente pela alusão ao problema do autor e a relação silenciosa da família, mas principalmente porque as expressões faciais capturadas nas páginas traduzem de forma perfeita seus complexos sentimentos.
A narrativa de Small é fundamentalmente gráfica. Páginas subsequentes vão se desenrolando-se sem uma única palavra, confiando exclusivamente nas imagens para contar a trágica e solitária infância do autor. O silêncio é parte integrante tanto da narrativa de David Small (o autor) quanto do mundo do jovem David (o personagem), tornando-se um elemento essencial que compõe toda a obra.
Não se pode dizer que a narrativa é apenas em volta de um único evento – a cirurgia e o câncer – mas sim é em volta dos detalhes que vão reger a vida de Small e moldar toda a sua existência.
O título “Cicatrizes” vai aparecer de diferentes formas na narrativa. Em primeiro lugar, refere-se, evidentemente, às cicatrizes físicas decorrentes do procedimento cirúrgico que quase o privou da capacidade de falar. Contudo, vai além disso, remetendo também às cicatrizes emocionais resultantes do fardo que o pequeno David tem que suportar.
“Cicatrizes” é uma HQ em tons de cinza, com poucas partes escritas. Mas isso não significa que seja uma leitura fácil e rápida. Em vários momentos é preciso dar pausas para respirar e pegar fôlego antes de continuar a leitura. É uma história difícil de digerir e mais difícil ainda de aceitar que realmente aconteceu. Existem partes que ficamos com vergonha de está lendo o relato, por ser pessoal demais. Narrada pelo silêncio e por cores cinzas, “Cicatrizes” é um grito que foi por muito tempo sufocado.