“Mo Dao Zu Shi”, Mo Xiang Tong Xiu

Por Giovanna Lima

“Mo Dao Zu Shi”, ou, como foi traduzido para o Brasil, “O Fundador da Cultivação Demoníaca”, retrata a história incrivelmente contada de Wei Wuxian, um cultivador do mundo oriental. MXTX, ou Mo Xiang Tong Xiu, a autora da novel, merece todo o amor que recebe pela sua escrita. Usando e abusando de contos da sua cultura, ela escreve de forma belíssima sobre um mundo moralmente ambíguo, onde todos os personagens têm ambições, sonhos e trabalham para conquistá-los, seja lutando de forma justa ou não para alcançar seu lugar de direito. 

A história inicia de forma inusitada, anunciando a morte do Patriarca Yiling – que futuramente é revelado ser a identidade do ‘mal’ do personagem principal – através do cerco que reuniu todas as nações para devastar e acabar com o grande mal criado pela Campanha Queda-do-Sol. Apesar dos diversos nomes e informações majoritariamente conhecidas pelos chineses, já que a autora escreve sobre sua própria nação, não se torna difícil a conexão com a história pela forma humanizada com que ela retrata todos os personagens, lhes dando voz e visão, sem calar e sufocar seus pensamentos em prol do bem do protagonista. 

Bem esse que o protagonista raramente vê em sua vida. Sua história é principalmente explorada na adolescência e na idade adulta, mas a autora não deixa de informar que, mesmo na infância, o protagonista não teve muito tempo para realmente aproveitar uma boa vida. Com os pais mortos; passando um período indeterminado nas ruas até ser resgatado pelo melhor amigo da mãe; morando sob o mesmo teto que uma mulher que compartilha abertamente seu desgosto em tê-lo por perto; sendo hierarquicamente considerado inferior a seu irmão de criação (apesar de ser mais forte do que o mesmo); sofrendo punições e não tendo realmente muita sorte ao ser o culpado pelo ataque à sua vila, Wei Wuxian prova que, mesmo nos piores momentos, ele ainda consegue enxergar o lado bom da vida. 

Entretanto, como Wei passa de um passado difícil para o vilão da história? É uma virada bem construída e interessante de se ler – e perceber acontecendo – ao passo que, durante a Campanha Queda-do-Sol, o jovem é jogado de um penhasco em direção à morte por culpa de seu irmão de criação, mas sua perseverança e vontade de viver o fazem se manter em pé no único lugar ao qual ninguém sobreviveu. E claro, ao ficar preso no monte por anos, sem seus poderes anteriores, Wei Wuxian faz de tudo para se manter vivo e passar por isso o torna diferente, o torna poderoso, mas com o tipo errado de magia que ele obtém. 

Em resumo, apesar de ter saído da pior situação possível no monte, Wei Wuxian ainda não se torna o vilão logo de cara, ele busca vingança por quem tentou acabar com sua vida e seus atos únicos e diferentes (pelo tom de sua magia) são o que causam a sua reviravolta e futura queda como Patriarca Yiling. Seu fim ocorre majoritariamente por muitos sentirem inveja da história de superação constante do protagonista, revelando seres amargos com suas próprias posições e sem a coragem que Wei possui de mudar e conquistar o mundo com suas próprias mãos.

Ao decorrer da história, é possível perceber que Wei Wuxian tinha as melhores intenções sempre, mas as consequências de seus atos raramente eram agradáveis. Sendo manipulado por outros jogadores tão ambiciosos quanto o próprio protagonista, ele acaba perdendo tudo o que lhe resta, fazendo com que o próprio se atire de um penhasco em direção à morte, mesmo com o amor de sua vida lhe suplicando em silêncio que não o faça. 

Não é surpresa nenhuma que ele realmente morre e que sua história de vida é ⅖ do total da história, pois mesmo após sua morte, seu nome assombra os sonhos das criancinhas mal comportadas, seu império de terror é propagado pelos cidadãos e não morre na boca do povo, seus contos se espalham como fogo em palha seca, deixando a memória do personagem viva na mente de todos, até que, em um dia, sua alma é resgatada por intermédio de um ritual e ele se vê entre o mundo dos vivos novamente. 

Agora, no corpo de um garoto odiado pela família e com um desejo de vingança, Wei Wuxian é obrigado a completar o pedido feito para si para poder continuar vivo. Ninguém sabe que ele voltou, pois apesar de sua alma estar de volta, o corpo que habita ainda é o do garoto do ritual, criando a oportunidade perfeita para que ele deixe a indesejada fama de Patriarca para trás e possa realmente viver a vida que não teve a oportunidade de viver.

Entretanto, mesmo após concluir o pedido do garoto, Wei Wuxian não se vê livre por completo. Ele cruza imediatamente – seria sorte, azar ou destino? – com o dono dos olhos suplicantes que foi sua última visão há 13 anos, quando se jogou do penhasco. Por um motivo muito específico, Hanguang-jun ou Lan Zhan, para os mais próximos, reconhece a alma por trás do corpo e faz questão de levar Wei Wuxian para O Recanto das Nuvens, local onde mora e onde ele conheceu Wei Wuxian pela primeira vez. 

Wei Wuxian se vê em uma posição onde não pode negar a ajuda de Lan Zhan, e onde, não o seguir, pode levá-lo a um caminho que revele sua real identidade para outras pessoas. E o homem sabe como isso é perigoso, dado que mesmo após 13 anos, seus feitos ainda não foram esquecidos e, com o poder do conto oral, foram tornados em atos ainda piores. Ficar com Lan Zhan é inicialmente questão de segurança, mas não demora para que se torne algo mais confortável e mais desejado por seu subconsciente do que ele está pronto para admitir. 

Durante a missão na nova vida de Wei Wuxian, MXTX desenrola tramas que explicam e exploram, com genialidade e grande estratégia, o porquê de todos os atos da vida do protagonista sempre se virarem contra ele. Gradualmente, o casal vai descobrindo falhas em um plano astuto criado pelo real vilão da história que, mesmo estando presente desde o primeiro livro, não levanta suspeitas até que sua própria versão da história seja contada.

Apesar de ser intitulado como romance, acredito que, principalmente por conta da censura chinesa, Mo Dao Zu Shi se trata muito mais de uma fantasia muito bem escrita do que o romance que vemos florescer em diferentes estágios para Wei Wuxian e Lan Zhan.

O sentimento retratado pelo casal é marcante, não se engane, apesar das poucas cenas de romance de fato, seu amor é de tirar o fôlego. Suas histórias de vida entrelaçadas desde o primeiro momento em que se encontram, a dificuldade em admitirem realmente os seus sentimentos os torna tão reais que é impossível não chorar quando finalmente temos um pouco da visão do que Lan Zhan passou por 13 anos na fiel espera de que Wei Wuxian um dia voltaria, ou que ele morreria e poderia reencontrar sua alma gêmea em outra vida. 

Ambos os personagens sofrem, lutam e se amam em tamanha intensidade, que ler meio milhão de palavras sobre suas vidas ainda parece pouco comparado ao que eles têm a oferecer, mas o final chega e felizmente faz jus a todo seu percurso. MXTX não deixa a peteca cair em nenhuma página, trazendo uma história brilhante à vida, cheia de ensinamentos, sentimentos e paixão avassaladora pelo mundo que construiu.

Não é à toa que, mesmo em um país onde o relacionamento que os personagens principais partilham é proibido, eles não possam negar o impacto de duas das três histórias da autora, reconhecidas mundialmente e adaptadas para diferentes formatos, ganhando uma multidão de público, possibilitando que o livro fosse traduzido para diferentes idiomas e finalmente chegasse ao Brasil, depois de um abaixo-assinado, pela Editora NewPop. 

Sendo assim, apesar de o mundo da cultivação ser um tópico desconhecido para muitos, vale a pena conferir a história de Wei Wuxian e sua trajetória de volta dos mortos, podendo se encantar com sua personalidade forte e cativante, possibilitando dessa forma que sua história seja uma porta de entrada para muitos a um novo gênero de leitura. 

Esta resenha faz parte da série Autores da Torre, do Projeto de extensão Torre de Babel, da Biblioteca José de Alencar (Faculdade de Letras/UFRJ) 

1 thoughts on ““Mo Dao Zu Shi”, Mo Xiang Tong Xiu”

  1. Mo Dao Zu Shi e Tian Guan Ci Fu (da mesma autora) moram no meu coração. Sem falar nas versões em manhua e donghua.. a arte visual é belíssima!
    Essas duas obras foram a porta de entrada para o, até então, desconhecido mundo das novels chinesas.

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