“Me arrebato com ela”: Elena Ferrante e o fascínio entre as amigas geniais.

Por Vitória Valentim – Releituras na Quarentena

Logo precisei admitir que as coisas que eu fazia sozinha não eram capazes de disparar meu coração, só aquilo que Lila tocava se tornava importante. Se ela se distanciava, se sua voz se afastava das coisas, estas se cobriam de manchas, de poeira.

“A Amiga Genial” é o primeiro livro da tetralogia napolitana da misteriosa escritora italiana que responde ao pseudônimo de Elena Ferrante, publicado em 2011 pela Edizioni E/O e chega ao Brasil em 2015 pela Editora Globo S/A. Considerada como uma das maiores romancistas dos últimos tempos pelo New York Times, Ferrante divide o livro em um prólogo e dois capítulos (infância e adolescência), traçando a vida de Elena Greco (Lenù) e sua amizade com a enigmática e insensata Rafaella Cerullo (Lila) e tem como cenário, na maior parte do tempo, uma periferia Napolitana pós segunda guerra mundial, extremamente pobre, patriarcal e violenta; e, em breves momentos, a belíssima ilha de Ischia.

A história começa com um prólogo nomeado “apagar os vestígios”; que seria no tempo presente, com um telefonema de Rino à Elena Greco para avisar do desaparecimento de sua mãe, Rafaella Cerullo. Lila havia sumido sem deixar qualquer rastro; cortou seu rosto de todas as imagens, recolheu todas as roupas que tinha, qualquer pertence, qualquer documento que certificavam sua existência havia desaparecido consigo. Após receber tal notícia, Lenù se dá conta de que não havia guardado uma lembrança material sequer de sua amiga e, em um ato de desafio contra a vontade de Lila, decide escrever toda a história das duas, desde o momento inicial na escola do bairro; tudo isso para evitar o apagamento completo de Lila. E assim começa o livro, como um ato de rebeldia.

Com mais de 40 personagens na história, Ferrante nos presenteia com uma escrita extremamente detalhada, fluída, com imagens vívidas e complexas, às vezes alternando entre passado e presente (a exemplo do prólogo) e, desse momento, ela volta ao passado da personagem, seja para relembrar, tornar mais nítido ou esmiuçar a essência do livro. O modo de escrever de Ferrante, na minha opinião, torna a leitura ainda mais estimulante. Me fez pensar no que aconteceu e porquê Lila sumiu e se existe uma explicação para essas questões. Mas para isso, será necessário ler o resto da tetralogia, que segue com os títulos: História do Novo Sobrenome; História de quem foge e de quem fica; História da Menina Perdida.

No curto capítulo sobre a infância, descobrimos que Elena Greco (Lenù) era, de certa forma, encantada por Lila desde o primeiro momento. Greco sempre foi a aluna exemplar de sua turma de primeira série elementar, recebendo elogios diários de sua professora, enquanto Cerullo (Lila) sempre atormentava a turma. Porém, tudo muda quando a Professora Olivieiro descobre que sua aluna mais desobediente já sabe escrever, algo inesperado dada a configuração da primeira série na época. Nesse momento, desponta em Lenù certo deslumbre e inveja pelo intelectual de Lila. E a relação delas, já nesse momento, é essencialmente estruturada pelo ciúme e a competitividade entre as duas; Lenù se acostuma com a sensação de subalternidade, regulava-se de acordo com Lila para mantê-la por perto pelo simples fato de ser fascinada por sua excelência.

No entanto, essa dinâmica da relação inverte quando Lenù consegue fazer e passar no teste de admissão ao ensino médio, que era pago, enquanto Lila nem sequer pôde fazer o exame por sua família não ter condições e, acima de tudo, por seu pai não aceitar ter uma filha a estudar enquanto ele e seu filho trabalham. Com isso, Lila fica ainda mais revoltada e transtornada, enquanto Lenù descobre que a fragilidade de sua amiga a agrada, como se tivesse, finalmente, “uma necessidade de superioridade”. Nesse momento em especial a história condensa o fator social da vida no bairro de Luzzatti no pós guerra; em um local pobre e desigual, o direito básico de crianças estudarem ao invés de trabalhar vira um privilégio. E, como sabemos, essa questão ultrapassa o tempo e o local do livro.

Os sintomas da sociedade desigual Napolitana é ainda mais aprofundado no período de adolescência das personagens, e isso vai desde pequenos e distintos embates entre classes (pobres, mafiosos, ricos, comunistas), até a vergonha e o medo de ter um corpo pós puberdade, um corpo mutável, um objeto de desejo ao olhar dos meninos brutos.

Nesse período, as disputas entre Lenù e Lila permanecem acirradas, vacilando pela distância de realidades com Lenù se apropriando das paixões e trejeitos da amiga para se sentir feliz e se aproximando de pessoas que agiam e falavam como Lila para suprir sua falta, “só aquilo que Lila tocava se tornava importante”, ela diz cheia de falta e melancolia. Essa é a constante na sua vida, desde a infância; mesmo que essa fixação possa ser até vista com preocupação por alguns leitores, dezenas de vezes vemos como essa amizade instigante impulsiona ambas garotas a tentar algo novo, a viver e ver a vida de modos diferentes; uma relação cheia de riscos, persuasão e, acima de tudo, cumplicidade. Não importa o que aconteça em L’amica Geniale, apesar de qualquer problema, Lila confia em Lenù e vice e versa, como se as duas fossem feitas da mesma matéria.

Fica bem claro ao longo do livro que Lila é a “amiga genial”. Mesmo sem poder frequentar a escola, ela estuda escondido e aprende latim e grego perfeitamente antes de Lenù. A escrita palpável e crua de Lila, mesmo que no livro que escrevera na infância ou em uma carta, é o fio condutor que molda a maneira que Lenù absorve para escrever seus trabalhos. E, mesmo assim, Lila vê Lenù como sua amiga genial e muito disso pode levar em consideração o fato que Lenù teve a possibilidade de sair do bairro paupérrimo, infértil e violento para estudar, trabalhar e se aventurar.

Lila: Qualquer coisa que aconteça, continue estudando.
Lenù: Mais dois anos: depois pego o diploma e termino.
Lila: Não, não termine nunca: eu lhe dou o dinheiro, você precisa estudar sempre.
Lenù: Obrigada, mas a certa altura a escola termina.
Lila: Não para você: você é a minha amiga genial, precisa se tornar a melhor de todos, homens e mulheres.

O afeto, a paixão, ciúmes e, ouso dizer, o desejo de Lenù por Lila se mostra recíproco e em momentos, me questionei como Lila escreveria sobre sua vida, quem ela seria se tivesse tido as mesmas oportunidades de sua amiga; teria ela ficado em Nápoles ou partido, assim como Lenù fez na vida adulta? Lila, ainda assim, fugiria sem deixar rastro sequer? Para mim, essa questão é de imensa importância: quem seríamos se tivéssemos todos as mesmas oportunidades?

Talvez essa questão explique o desaparecimento de Lila que, por vezes, parece extremamente frustrada com o destino que lhe foi forçado; a Lila de 16 anos, obrigada a se casar para sustentar sua família, torna-se irreconhecível para a professora Olivieiro, que tanto a elogiava e, às vezes, até para Lenù. Ela vira uma sombra do que era, não mais incendiava Lenù com seu conhecimento, não conseguia acompanhar o intelecto de sua amiga e tenta, a todo tempo, se satisfazer com a vida que lhe foi imposta. E nessa vida, os contatos e o dinheiro possuem mais valor do que o conhecimento e a felicidade. Quando Lila implora para que Lenù não pare de estudar nunca, percebo que ela deseja salvar Lenù da possibilidade de virar esse simulacro de quem um dia já foi.

Meu primeiro contato com a obra de Ferrante foi com a série italiana homônima baseada na teatrologia; cada temporada — até agora, possuem duas — retrata um livro completo. Depois de ter lido o primeiro livro, percebo que o adaptaram com perfeição, desde os detalhes, as atrizes, as atuações até a roteirização que passa pelas mãos de Ferrante. No entanto, a experiência do livro é mais intensa, descritiva e alguns sentimentos da narradora são externalizados com mais clareza, enquanto na série eles deixam que o observador entenda como bem quiser. Ao fechar o livro, percebo a sorte que tenho e, também, que sorte a nossa de poder ler (e assistir) essa obra sensibilíssima, que nos leva a tantos lugares e sensações. E uma sorte ainda maior por ter a possibilidade de ler os outros três livros que contam a história das amigas geniais.

Assista ao vídeo sobre a “Série Napolitana” em nosso Canal no YouTube: https://youtu.be/Pi1Y_iOWMhg

1 thoughts on ““Me arrebato com ela”: Elena Ferrante e o fascínio entre as amigas geniais.”

  1. Senti e vivi com uma intensidade muito grande a leitura fascinante desta tetralogia bem como do livro A filha perdida! Seja quer for Elena Ferrante nos faz refletir, sonhar e sofrer junto com seus personagens de uma forma muito especial. Tb fiquei grata por poder ter tido esta experiência…

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