Por Gisele Palmieri
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QUANDO O ATO DA LEITURA SE TORNA PERIGOSO
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“E, mesmo ficando mal, você convence a si mesmo de que só é possível entender este mundo decidindo estar dentro dessas histórias”.
(SAVIANO, 2014, p.87)
Um livro sobre a cocaína. É o que pode parecer, a princípio, a obra Zero Zero Zero (2014), do escritor napolitano Roberto Saviano. Pelo menos é como os leitores mundo afora a definem. Lida por muitos como um texto predominantemente do tipo informativo, cujos objetivos são mostrar o funcionamento da indústria e do comércio do tal pó branco e a sua polpuda rentabilidade econômica – a ponto de o autor considerá-lo a mola mestra da economia mundial – Zero Zero Zero é mais que apenas um “almanaque do crime organizado latino-americano”, indo além da revelação de informações sobre os mecanismos e sobre o faturamento do narcotráfico no Novo Mundo.
Considerado um romance investigativo pelas editoras que o publicaram, nos capítulos iniciais da obra são apresentadas a história de uma ramificação criminosa latino-americana e a história de vida de seus líderes, personagens que são peças importantes na engrenagem do narcotráfico dessa região. Tendo como ponto de partida o México – “Quem não conhece o México não pode entender como funciona hoje a riqueza neste planeta.” (SAVIANO, 2014, p.45), passando pela Colômbia pós-Pablo Escobar, ao final da narrativa, o leitor tem diante de si, montado, o quebra-cabeças do funcionamento do narcotráfico em toda a América Latina e em outras partes do mundo, com rápidas passagens em Londres, na Rússia, na Guiné-Bissau e em Nápoles, todas rotas de distribuição da cocaína e/ou postos operacionais dos narcotraficantes colombianos ou mexicanos. Tem-se em mãos quase que um dossiê sobre o narcotráfico. Os cartéis mexicanos, a guerrilha/os paramilitares colombianos e suas ligações com a máfia calabresa (‘Ndrangheta), os pushers, a Mafija (máfia russa), os brokers do pó e o Comando Vermelho (na edição brasileira), além de outros grupos criminosos, produtores ou distribuidores da cocaína estão ali representados.
Muitos são os personagens envolvidos direta ou indiretamente, negativa ou positivamente, com esse submundo, sejam eles grandes boss da empresa das drogas ou mártires no combate ao tiranismo das grandes teias do poder paramilitar. Anônimos e famosos. Artistas e políticos. Chefes de família e chefes de clãs. Histórias reais que ganham ares de ficção por meio da narrativa fascinante do escritor-jornalista mais amado e odiado de Nápoles. Todos os personagens são protagonistas que emergiram às manchetes de jornais ao longo dos anos de guerra ao narcoterrorismo. Acompanhamos na trama a história de vida de grandes personagens – reais – Félix Gallardo “El Padrino”, Pablo Escobar “El Mágico”, El Chapo, Don Salvador, Tim Lopes (na edição brasileira), Natalia Paris, Julio Fierro, Baruch Vega, Carlos Castaño, Kiki Camarena, Bruno Fuduli, Bebè e Mario, The Brainy Don, Christian Poveda, Bladimir Antuna García, Griselda (La Madrina) e Sandra Ávila Beltrán (La Reina) – com a mesma sensação que normalmente temos quando acompanhamos a história de personagens de ficção: a de que aquelas histórias são inverossímeis, tamanhos são os absurdos a que foram submetidas ou a que se submeteram. São figuras cujos destinos foram forjados pelo narcotráfico ou que se tornaram “lendas” do crime na América Latina. Histórias de barbaridade e justiça, que na mesma proporção provocam o horror e promovem a honra, dois dos maiores extremos para os quais a figura humana pode polarizar diante de um cenário de extrema violência.
Protagonistas, também, são os bancos em um dos capítulos sobre lavagem de dinheiro. Saviano mostra que os malefícios do capitalismo financeiro são da responsabilidade de pessoas comuns que funcionam como uma engrenagem da “banalidade do mal”, uma vez que o poder dos bancos é comandado pelo poder dos homens. Assim como os cães, que ganham um capítulo especial em que os conhecemos como artífices tanto da polícia antidrogas, na função de cães farejadores, quanto artífices do narcotráfico, na função de “mulas”.
A maneira de narrar de Saviano produz um efeito impactante no leitor. Ele brinca com os gêneros de maneira a demonstrar a sua competência como escritor, apesar de sua formação ser a de jornalista. Em seus textos, um não anula o outro: o jornalismo e a literatura são explorados em igual proporção. O enredo versa em várias direções, criando um amálgama de gêneros discursivos. É evidente que o escritor explora-os em quase todas as suas possibilidades dentro da temática discutida na obra. Nessa dança narrativa/informativa sobressai-se até mesmo uma poesia sobre a cocaína. Apresenta-se ao leitor três distintas formas narrativas: a história das vítimas, dos algozes e dos parceiros do narcotráfico; o relato pessoal da investigação jornalística sobre as várias organizações narcotraficantes e, ainda, as reflexões de Roberto Saviano sobre o seu ato de escrita, momento em que seu lirismo pungente se faz bastante provocativo e apelativo. Essa mescla entre ficção e não ficção, literatura e não literatura, objetividade e subjetividade criou uma polêmica entre leitores de Saviano. “É um ensaio”, dizem alguns, “é um trabalho investigativo”, dizem outros, “não é literatura”, falam outras tantas pessoas. Fiquemos com a definição do próprio autor em entrevista a um jornal português em outubro de 2014: “Quando me perguntam se o livro é um romance ou um ensaio, respondo: tem factos e tem uma reflexão pessoal.”
Alguns leitores também desmerecem a obra por conter nela muitas informações facilmente encontráveis na internet. Questiona-se o fato de Saviano servir-se demasiadamente de fatos. O autor, inclusive, sofreu uma denúncia de plágio, feita pelo jornalista Michael Moynihan (do The Daily Beast, jornal norte-americano), que o acusou de ter copiado trechos da Wikipédia. Além disso, considera-se que, diferentemente de Gomorra (2006), obra que alavancou Saviano como escritor, em Zero Zero Zero a tensão narrativa é mais fraca que no seu primeiro livro, um relato de sua malfadada experiência ao se infiltrar na Camorra, máfia napolitana. Certo é que ler os fatos em um jornal em vez de de ler em sua obra não tem a mesma força catártica de seu texto meio literário, meio informativo. No livro do jornalista napolitano, os personagens ganham contornos dramáticos, evocando a emotividade no leitor. Conhecemos o lado humano dos grandes chefes narcos, homens que, mesmo capazes de realizar as maiores atrocidades, têm fé religiosa, amor à família e preocupações comuns. Saviano, no entanto, ao mostrar suas facetas mais humanizadas, não procura redimi-los das atrocidades por eles praticadas. “Capitalistas-Robin Hood, sem escrúpulos, sanguinários e impiedosos, podres de ricos e gastadores” (SAVIANO, 2014, p.130), ressalta o escritor sobre esses lendários figurões do narcotráfico.
Paralelo às peripécias de vidas que giram em torno do polêmico pó branco, há as reflexões e a expressividade do autor/narrador/personagem sobre esse enredo horripilante. O capítulo “A ferocidade se aprende” é destinado às suas reflexões a respeito do ato de escrever sobre a violência. “Há anos me pergunto de que serve alguém se ocupar de mortos e tiroteios. Tudo isso vale a pena?” (SAVIANO, 2014, p.85). Num diálogo metalinguístico com o leitor, indaga sobre o porquê ele escreve aquele livro, assim como questiona por que nós o lemos. Por que investigar crimes, por que relatar e expor suas descobertas sobre assuntos tão indigestos e por isso mesmo evitados? O próprio responde: “Você pode pensar que se ocupar de tudo isso seja uma maneira de redimir o mundo”(SAVIANO, 2014). Após publicar Gomorra (2006) e ter a sua vida destruída – palavras do próprio autor – ao ter que passar a viver sob escolta policial 24 horas por dia, Saviano assume, com a publicação de Zero Zero Zero, seu engajamento jornalístico-literário de denúncia. “Um herói nacional”, afirmara o escritor italiano Umberto Eco. Seu relato assume a forma de uma denúncia brutal, mas também desiludida. “Sou um monstro, tal como é monstro qualquer um que se tenha sacrificado por algo que lhe pareceu superior.” – ele diz (SAVIANO, 2014, p.390).
O livro, além de conter um posicionamento crítico do escritor-jornalista, é também um chamado de posicionamento da parte da população leiga e alheia à face perversa do capitalismo. É a vontade de usar a palavra para expurgar a indignação face aos horrores permitidos por grandes grupos organizados e pequenas tribos cuja única ordem é a selvageria e a brutalidade com a finalidade de proteger a produção e a rota de distribuição das drogas. São atos ocultados ou superficializados graças à complacência covarde da política e da mídia. É uma narrativa pungente, posto que vai além do relato. Aprofunda os fatos noticiados na TV e nos jornais, revelando os mecanismos bárbaros por trás da máquina do tráfico de drogas, o seu faturamento e a fragilidade corajosa de policiais, políticos, juízes e pessoas comuns que entram no embate com os criminosos. Tira a mordaça que aprisiona tantas vozes que se calam diante do terror latente naqueles que se veem impotentes diante dos grandes deuses do mercado da droga. “A palavra dá a você uma força muito superior à força que o seu corpo e a sua vida podem conter” diz Saviano (2014, p.87).
Não é apenas um livro sobre a cocaína. É sobre como a narrativa pode se sobrepor à paralisia diante do terror e tomar lugar na ação fraquejante e impotente contra o poder. E, principalmente, é sobre o poder da leitura. Saviano ressalta o quanto o ato da leitura é potente e palpável. “Nada é mais poderoso do que a leitura, (…). Ler é um ato perigoso porque dá forma e dimensão às palavras, encarna-as e as espalha em todas as direções” (SAVIANO, 2014, p.390). Ele repassa ao leitor a responsabilidade de levar suas histórias adiante. Há, inclusive, um recado especial aos leitores brasileiros na seção “Agradecimentos”: “Agradeço a vocês, leitores brasileiros que, ao ler estas histórias, as tornarão perigosas.” Impossível não se lembrar do seu conterrâneo Leonardo Sciascia, autor que também se utilizou da narrativa para a denúncia, no caso, a ação da máfia na Sicília. Roberto Saviano pode ser considerado um herdeiro de Leonardo Sciascia no que se refere aos objetivos das narrativas de ambos. Os dois sentem a necessidade de escrever sobre o crime, jogar luz sob o funcionamento oculto das máquinas criminosas. Quando Sciascia publica Il giorno della civeta, em 1961, fica conhecido como o primeiro escritor a falar sobre a máfia em uma narrativa ficcional, adotando um posicionamento crítico com intenção delatora, apesar de ser uma obra ficcional. Sciascia utilizou uma linguagem simples, para fácil comunicação, de uma estrutura de gênero palatável às massas (romance policial) e uma objetividade no olhar sobre um assunto até então incômodo na Itália, com a finalidade de que sua obra tivesse o maior alcance possível.
Quase meio século depois do autor siciliano, surge o napolitano Saviano, elevando os recursos estilísticos/linguísticos da sua obra (literária?) ao mais alto grau de intenção crítica e engajada. Ao sabor das narrativas contemporâneas, sua obra Zero Zero Zero é uma mistura de auto ficção, ensaio, romance investigativo, relato jornalístico e diário pessoal. Dessa vez, a linguagem simples, por vezes até bastante coloquial, e o realismo crítico se mostram com maior agudeza. Consequência disso é a perseguição sofrida pelo escritor que, ameaçado de morte pela Camorra, foi obrigado a deixar seu país (uma espécie de Salman Rushdie italiano, segundo o New York Times). Fato que demonstra o quanto as palavras podem ser perigosas, mas apenas se elas forem lidas por alguém. E este parece ser o recado de Roberto Saviano: o poder de mudar o mundo está nas mãos de nós, leitores.
O mais curioso é que não li o livro descrito na resenha de Gisele. Vi a série no Prime e procurei algo para ler sobre os episódios e me deparei com essa fascinante descrição do livro; resenha importante sobre um tema que nos chama a atenção no Brasil atual!