Por Maria Luísa Sena
“Kim Jiyoung, nascida em 1982”, existe em um lugar entre a realidade e a ficção. Isso porque além de histórias com as quais muitos podem se identificar, ele conta também com dados de pesquisas apontados nos rodapés. O livro, que vendeu mais de um milhão de cópias mundialmente, narra a vida de apenas uma mulher coreana (Kim Jiyoung), mas é na verdade uma retrato da realidade compartilhada por grande parte das mulheres do país, e em aspectos pontuais, até do mundo. Em sua obra, Cho Nan Joo inspira-se em suas próprias vivências para escrever sobre a jornada da personagem titular e também de milhões de outras mulheres, o que fez com que muitas pudessem se identificar com as injustiças vividas por ela. Fica então claro o porquê do sucesso do livro e sua tradução para 18 idiomas.
No primeiro de seus seus capítulos, descobrimos que Jiyoung (na Coréia o nome de família, ou sobrenome, vem primeiro e o nome depois) não está bem. Seu marido relata que ela vem apresentando comportamentos estranhos: às vezes ela assume a consciência de outras mulheres e passa a agir como elas. Nem sempre são mulheres que ela conhece, vemos Jiyoung agir como uma antiga falecida amiga de seu marido com quem ela jamais conviveu. Também vemos ela, no meio de uma visita aos sogros para celebrar um feriado coreano, agir como se fosse sua própria mãe. É nesse evento que o seu marido, Daehyun, percebe a seriedade da situação e decide procurar ajuda de um médico. Os capítulos a seguir são relatos em terceira pessoa sobre a vida de Jiyoung, de sua infância até 2015, ano que procura ajuda do médico.
A obra toda obra vemos o machismo coreano e o quanto ele é enraizado na sociedade. Um dos primeiros exemplos de como a cultura coreana da preferência aqueles do sexo masculino é no capítulo “Infância 1982-1994”, quando a avó de Jiyoung trata o único neto homem com muito mais carinho e dedicação do que da forma que trata suas netas. O valorização dos meninos em detrimento da das meninas é muito grande e fica clara em um dos momentos mais marcantes do livro: quando mãe de Jiyoung se sente na obrigação de realizar um aborto quando descobre que está grávida de uma menina pela terceira vez. Ela desde de que se casou sente pressão para gerir um filho masculino, não só de forma implícita da sociedade, mas também de maneira explícita quando ela ouve isso de familiares. Quando descobre o sexo do bebê, sabe que precisa tentar ter um filho menino e também que não teria condições para criar quatro crianças. Então, apesar da decisão ser difícil para ela, acaba interrompendo a gravidez.
O cenário de favorecimento oferecido aos membros do sexo masculino no país exemplificados nesses momentos do livro é onde Jiyoung passará seus trinta e três anos de vida. São expostas as diversas situações desagradáveis, momentos de assédio e desvalorização vivenciados por ela, assim como por mulheres a sua volta. Na faculdade Jiyoung ouve sobre como o machismo faz com que seja muito mais difícil para mulheres conseguirem empregos mesmo quando tem diversas qualificações, porque empresas não querem contratá-las e ter achar substitutos quando elas abandonarem o emprego para se dedicarem à maternidade (coisa que muitas são pressionadas a fazer). Outro motivo é o preconceito em relação a sua competência que ainda é muito presente entre aqueles que ocupam cargos altos nas grandes empresas.
Neste livro, Cho Nan Joo escreve narrando uma só jornada e consegue descrever a vida de milhões. A obra é sem dúvida uma forte denúncia do machismo e de suas consequências que afetam todos os momentos da vida das mulheres, mas também serve como lembrete de que todas passamos por isso. Todas as mulheres são afetadas pela sociedade patriarcal e aqui que mora nosso poder: na união fomentada pelas experiências em comum. O sentimento que fica após a leitura do livro não é simplesmente a tristeza de ler sobre esses momentos difíceis, mas a esperança do poder que mora na sororidade que surge de termos as mesmas dores.