Por Vitor da Hora
A Casa dos Espíritos é o primeiro romance da escritora chilena Isabel Allende, tendo sido publicado originalmente em 1982. Vencedora do Prêmio Nacional Chileno de Literatura (2010), seus livros já venderam milhões de exemplares, e foram traduzidos para dezenas de idiomas. A autora é parente do ex-presidente socialista Salvador Allende, deposto e morto no Golpe Militar comandado pelo general e futuro ditador Augusto Pinochet em 1973. A história política do Chile, com a qual Isabel tem uma relação muito particular, serve como principal inspiração para o romance: a trama conta a história da família Trueba e sua inserção nos eventos da conjuntura política nacional – o nome do país não é citado no livro, mas fica claro que ele é inspirado no Chile do século XX. O livro faz parte do movimento conhecido como Realismo Fantástico – escola literária latino-americana caracterizada pela, entre outras coisas, inserção de elementos fantásticos em situações cotidianas – neste caso, personificado nos poderes sobrenaturais que Clara desenvolve após fazer um voto de silêncio depois de um evento traumático. Os protagonistas da história são as mulheres da família Trueba – Clara, Blanca e Alba: mãe, filha e neta, respectivamente – e o patriarca, Esteban.
Após se casarem, Esteban e Clara passam a morar numa antiga fazenda da família dele, Las Trés Marias, a qual com o passar dos anos se transforma em um grande império latifundiário – o que o leva a se filiar e conquistar cargos eletivos pelo Partido Conservador. Para total desgosto de seu pai, Blanca, além de simpatizar com ideias de esquerda, engravida e se casa com Pedro Garcia III: um líder camponês que milita pela causa da reforma agrária. O clímax do livro ocorre após o Partido Conservador perder ineditamente uma eleição para a Frente Popular de Esquerda, que sofre um violento golpe de estado após chegar ao poder. Entre outros personagens de destaque para a trama estão: Férula, irmã de Esteban que também vive na fazenda com a família; Jaíme e Nicolas, filhos de Clara e Esteban; Transíto Soto, amante de Esteban; e Miguel, namorado de Alba. O livro é repleto de fortes personagens femininas, cuja antítese se materializa na figura truculenta e misógina de Esteban – algo evidenciado pelo estremecimento crescente com as mulheres de sua família ao longo da trama.
O livro se mostra uma leitura bastante necessária para refletir sobre feridas ainda abertas na história latino-americana: como a formação patriarcal, personificada na figura de Esteban, e tendo como contraponto a conduta feminista de sua filha e de sua neta; a concentração fundiária, descrita na gênese de Las Trés Marias, que inclusive contava com condições de trabalho análogas à escravidão; e principalmente os golpes e ditaduras militares, e toda repressão violência política inerente a eles. A trama é complexa, contando com vários personagens e minuciosos detalhes, e narrada em primeira pessoa pelas mulheres da família Trueba. O livro aborda a violência de gênero e o papel da mulher na sociedade ocidental do século XX, período marcado por avanços nos direitos civis das mulheres, esta questão é retratada pelos desafios enfrentados pelas mulheres ao longo da trama – o teor feminista da obra inclusive fica evidente na dedicatória do livro, homenageando as mulheres da família Allende. De modo bem singular, o livro é capaz de traçar um interessante retrato dos comportamentos e costumes latino-americanos ao longo do século XX, bem como mudanças políticas e sociais no decorrer deste período, estes temas colocados sob a ótica de Isabel Allende, analisando e explorando fatos tão vulneráveis que ocorreram num passado recente de distintos países (e realidades) da América do Sul é que tornam a obra tão importante.