“A Hora da Estrela”, Clarice Lispector

Por Edgard Corteletti

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“A história é de uma inocência pisada, de uma miséria anônima.”

Clarice Lispector em entrevista

Como falar de uma obra que só de títulos tem treze? Clarice se utiliza de Rodrigo S.M. (De acordo com algumas teorias “Substantivo Masculino” ou “Sua Majestade”) como narrador da obra, e desde a “Dedicatória do autor (Na verdade Clarice Lispector)” é bastante irônica no que tange o suposto “autor”, apresentando a presunção de quem nos fala (Rodrigo), um homem rico que dedica a obra a si próprio e aos artistas clássicos, únicos dignos de receber a dedicatória a seu lado e que na verdade aparecem como os que o precedem, os que o profetizaram e o fizeram “explodir” em si mesmo.

O narrador deixa claro o árduo trabalho que terá em contar história de moça tão simples, a protagonista Macabéa. Que para isso terá de abdicar de seu vocabulário requintado a fim de não corromper a essência da personagem, uma moça tão pobre. Rodrigo se refere à Macabéa como ser desprezível, a todo momento renega seu valor, a reconhece como nada. Ele denuncia a condição de vulnerabilidade social e marginalidade (à margem da sociedade, exclusa dessa sociedade que não foi feita para ela – uma sociedade técnica e elitista) de Macabéa ao mesmo tempo em que denuncia sua própria prepotência e arrogância – como se fossem dois personagens sendo simultaneamente descritos.

A história, então, é anunciada pelos rufares do tambor de um soldado e acompanhada pelo violino plangente de um homem magro de face estreita e amarelada na esquina. Nossa protagonista, por muitas vezes referida pelo narrador como “a nordestina”, já é apresentada como “incompetente” e descrita como uma jovem de dezenove anos virgem, inócua, datilógrafa e amante de refrigerante de coca, de um “rosto que pedia tapa”, de uma “alma rala”. Rodrigo, inclusive, não raras vezes se questiona do porquê de estar escrevendo sobre ela, considerando-se tão superior à moça, sempre descrita como tão pouco, como nada. Não seria equívoco dizer que o narrador poderia ser lido como um reflexo da própria sociedade que invisibiliza e marginaliza a personagem.

A moça, descrita pelo narrador como “café frio” e comparada a “capim vagabundo”, acreditava que existir bastava, que as coisas eram como eram, e que não havia motivo para questioná-las. Macabéa é mostrada como uma personagem verdadeiramente alienada, sem consciência de si e do mundo que a cerca. Muito de seu modo de ser, ou de não ser – não questiona, não reivindica, mas apenas aceita com docilidade – é em grande parte, possivelmente, herança da criação dada pela tia, à base de batidas de nós dos dedos na cabeça da sobrinha, e disso aprendera a ficar de cabeça baixa. Uma infância sem bola nem boneca.

Depois da morte da tia, a protagonista, que de tão pobre economizava até a vida para que esta não acabasse, passou a dividir quarto de pensão com outras moças, todas também tido suas importâncias tiradas pelo narrador, eram apenas as Marias, trabalhadoras das Lojas Americanas e moradoras da Rua do Acre, onde Rodrigo deixa claro que jamais irá pisar pois tem “terror sem nenhuma vergonha do pardo pedaço de vida imunda”. As personagens, todas com o mesmo nome, trabalhando no mesmo lugar e morando no mesmo quarto passam a clara imagem de genéricas aos olhos do narrador, e a classe social das personagens da obra, de forma geral, dizem muito sobre como elas são apresentadas por quem nos conta, a começar pelo próprio, que rico e culto, se considerava superior, com existência válida e honrosa, em detrimento das personagens pobres da trama, que são genéricas, generalizadas, sem valor, identidade ou existência reconhecida. A prepotência e o menosprezo de Rodrigo para com as personagens em condição de pobreza é uma clara crítica social por parte da autora, que denuncia como as classes ditas baixas são vistas pela elite e pela sociedade de forma geral. “(…) quando se dá a mão, essa gentinha quer todo o resto, o zé-povinho sonha com fome de tudo. E quer mais sem direito algum, pois não é? (…)”.

O próprio texto, obra “de Rodrigo” (na verdade Clarice), por se tratar “da vida parca da datilógrafa”, é considerado por ele como literatura inferior, história sem técnica ou estilo, “ao deus dará”. História para a qual ele não dá importância e “sai como sair”.

Somos presenteados, contudo, por uma obra ímpar, provavelmente a mais conhecida de Clarice, e a última a ser publicada durante a sua vida, tendo falecido de câncer alguns meses depois. Nos deixou, dentre tantas personagens de suas diversas histórias, Macabéa, que gostava de ouvir a “Rádio Relógio” que dava “hora certa e cultura”, que adorava anúncios e os colecionava, assim como gostava de observar o cais do porto. Um dia – explosão (esse é um livro explosivo!) – Macabéa arranja um namorado, um homem também nordestino, Olímpico, com uma personalidade completamente diferente da dela. A partir daí, temos um desenrolar de acontecimentos que definem a hora de nossa estrela.

Sou suspeito em dizer, pois apenas esse ano já o li por três vezes, mas recomendo imensamente a leitura dessa obra extremamente marcante e singular. A hora da estrela é um acontecimento. Uma efeméride.

1 thoughts on ““A Hora da Estrela”, Clarice Lispector”

  1. Excelente explanação. Também no que é concedido a obra é possível inferir na questão de falta de perspectiva na qual muitos ainda vivem essa baixa expectativa, acabando por aceitar as coisas como são e até mesmo
    Acreditando ser o destino. Macabea mostra se como símbolo da ingenuidade. A obra foi passada em filme na década de 80, mas não conseguiu transmitir de fato a essência do personagem.

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