“Água Viva”, Clarice Lispector

Por Edgard Corteletti

Em Água Viva, Clarice busca compreender, apoderar-se do “é da coisa”, o it, um desejo de segurar o tempo nas mãos, como se não escorressem pelos dedos como areia. Desejo de que o tempo seja palpável, tateável, que se possa tocar e assim segurar. Que possua átomos e moléculas. A tentativa de captar o instante é falha, pois quando se vê já foi, e
sempre é, no presente, o novo instante, sempre novo e atual, nunca o instante que se queria prender a um segundo atrás.

Também busca sentir a música, a ouvir com o corpo, sentindo sua vibração. É interessante perceber a dança de sentidos promovida por Clarice nessa obra, em que tenta, através do sentido do tato, captar dimensões outras. Também a arte se mescla, em que pintura e escrita se confundem, e a escrita é a sua quarta dimensão. O corpo é instrumento a ser plenamente usado. A autora deseja escrever de corpo todo, com o corpo todo. Assim, quer
tatear a palavra, torná-la concreta, sólida, que uma palavra vire um objeto.

Dança, escrita, pintura, fotografia. A arte forma um jogo, em Água Viva, onde as suas formas se misturam, se confundem, como numa interdisciplinaridade da expressão da alma. Ler esta obra realmente parece se confundir a outras experiências artísticas, como a contemplação de um quadro, em que a autora nos pega pela mão e nos dirige a uma viagem, como uma guia, a profundos sentimentos encarnados em figuras como ratazanas, baratas, escorpiões e caranguejos. Tudo tem forma, tem vida, e é materializado.

Por mais que a leitura às vezes pareça precisar de pausas e respiros, de um tempo de absorção e tentativa de compreensão, a escrita parece ser extremamente acelerada, como um carro em alta velocidade, que Clarice dirige gritando por liberdade. A metáfora do carro em alta velocidade aqui parece caber bem, pois a autora fala de um desejo de liberdade que leva à morte, através de uma escrita que não visa o conforto do leitor, mas atingi-lo, metalizada, como uma flecha que traz uma liberdade mortal.

As palavras parecem emergir naturalmente, sem uma pretensão a priori por parte da autora, que de forma bastante orgânica expressa o mais íntimo de seu ser, no que ela revela ser misterioso até a ela própria, considerando-se obscura para si mesma. Como se as palavras fossem um grito instintivo vindo de uma força da natureza, de onde Clarice parece trazer várias referências presentes na obra, em que a autora esclarece não se ater a regras para a escrita, além da ordem da respiração. Busca essa desordem orgânica, que reconhece como potência.

O “É” parece objeto de estudo para Clarice, o “Sou-me” e “Tu te és”, o it, aquilo que é em nós e vai além das palavras, justamente o que Clarice explora tanto em suas obras, aquilo que se diz sem dizer, o que se diz no silêncio, que, em Água Viva ela nos convida a explorar, a decifrá-la através de seus mistérios. No explorar dos sentidos ela nos convida a ouvir seu silêncio.

É realmente difícil em certa medida produzir uma resenha sobre Água Viva, além de uma enorme responsabilidade pelo peso da obra e da autora, é de uma escrita extremamente singular, difícil de explicar, como uma bomba que em explosão espalha muitos pensamentos e sentimentos, como que soltos, mesmo que costurados, como ouvir um desabafo que toma diversas direções ao se deixar levar pela espontaneidade do que se sente e assim se produzir um monólogo, uma carta extensa, que, de tão rica em sentido, pode ter vários, ou um, que pode se captar ou não. Talvez aquele it, que está entre uma coisa ou outra, num sussurro, num silêncio. Aquilo que se diz em meio a tantas coisas ditas. E, mesmo que eu cite tantas, sinto que não importa o quanto se diga a respeito da obra, jamais seria possível tirar a surpresa da experiência, e por isso a dificuldade em escrever sobre, pois sinto que não contempla, a experiência só pode ser vivida, no momento, no instante. Se pudesse, descreveria em uma palavra: viagem. A autora nos leva numa viagem entre pensamentos e sentimentos, afetos, metáforas.

Diz-se que Cazuza leu Água Viva 111 vezes, e é de se entender. É aquela obra que a cada leitura se descobre algo novo, se tem uma nova leitura, um novo olhar, uma nova descoberta. Diferentes viagens, que mesmo para o mesmo lugar, carregam a singularidade de seu momento, do “Tu te és” do instante, que pode reverberar em infinitas possibilidades de afetações. Segundo Clarice, não é escrita para se ler, mas para se ser. Se é.

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