Por Lívia Junqueira
As Crônicas de Bane
A arte de Cassandra Clare em personagens imortais
“Era isso que os humanos faziam: deixavam recados, entre páginas ou esculpidos em pedra. Como se esticasse a mão através do tempo e acreditassem que havia uma mão fantasma para segurá-las. Humanos não viviam para sempre. Só podiam torcer para que suas criações durassem.” (2014, p.38)
Magnus Bane é um dos protagonistas da série “Os Instrumentos Mortais”, escrita por Cassandra Clare. No quinto livro da série, Magnus entrega ao seu namorado um pequeno livro escrito à mão que continha os pontos mais importantes da sua longa vida imortal: “As Crônicas de Bane”. Publicado logo após a conclusão de “Os Instrumentos Mortais”, o livro é um apanhado de contos sobre a longa vida do feiticeiro Magnus Bane, que nos leva por diferentes eras da história junto com o feiticeiro, passando por eventos históricos como a Revolução Francesa, a Inglaterra Vitoriana e a epidemia da AIDS em Nova York nos anos 80. Seus relacionamentos com outros personagens já conhecidos no universo também são explorados, dando uma profundidade a mais no personagem para além do que já nos foi apresentado.
Ver esses períodos retratados pela narração moderna de Cassandra Clare já é interessante por si só, o que só se potencializa com a presença de Magnus e a interferência de Caçadores de Sombras, lobisomens, vampiros, fadas e feiticeiros, submetendo esses eventos a uma releitura eletrizante, onde magia e políticas do sobrenatural agem nos bastidores para manter as engrenagens do universo mundano rodando, com Magnus Bane como o seu principal facilitador.
Cassandra Clare tem o talento de escrever personagens extremamente reais e envolventes durante sua extensa obra, em específico os personagens imortais. No universo dos Caçadores de Sombras, os feiticeiros são filhos de humanos com demônios; incapazes de terem filhos, possuem uma parcela dos poderes de seus pais assim como a “Marca de feiticeiro”, características não humanas que os diferenciam da aparência mundana. Nós vemos alguns feiticeiros com o passar dos livros nesse universo: Tessa Gray, Ragnor Fell, Catarina Loss, entre outros. O atrativo desses personagens é o acúmulo de experiências resultante da vida imortal, e temos Magnus como o personagem que mais frequentemente representa isso.
Um ponto recorrente durante “Crônicas de Bane” é como Magnus é adaptável. De 1791 até 2008, nós seguimos o personagem através dos séculos por diferentes casas no Peru, França, Inglaterra e Estados Unidos. De país em país, de século em século, nós vemos Magnus viver uma espécie de espiral contínua: ele mora em algum lugar, vive aventuras ali, se apaixona, ama, e passa pela perda daquele que amou. De novo e de novo, o ponto mais frequente das “Crônicas de Bane” é como Magnus vive reprises do que seria considerada a “vida mortal” enquanto permanece vivo para sempre. Amar, perder e permanecer amando nos anos que se seguem são, para mim, a maior demonstração de resiliência possível.
Com o passar dos contos, a autora nos apresenta todos os motivos que o personagem poderia ter para se amargurar e se retrair. No conto “Ascensão do Hotel Dumort”, nós vemos um outro feiticeiro, bem mais velho que Magnus, Aldous Nix. Ele estava vivo há tanto tempo que já não via mais sentido em permanecer vivendo, sentia que não pertencia ao mundo mortal. Desestabilizado mentalmente, Aldous abre um portal interdimensional e se lança ao Inferno. Magnus entende muito rapidamente que não há nada que ele possa fazer para tentar salvar o outro feiticeiro, e os leitores conseguem ver como esse momento é crucial para o personagem: Magnus é posto frente a frente com um futuro muito possível para si mesmo, um futuro em que ele já teria vivido por tanto tempo, visto tantas coisas e conhecido tantas pessoas, que a vida em si poderia perder o brilho e cair em desuso. A partir daí, todos os relacionamentos e aventuras parecem escolhas conscientes, como forma de tentar espremer o máximo da parte boa de se estar vivo.
Magnus Bane viveu incontáveis anos, através de incontáveis perdas, e permanece com esperança, com gentileza e com amor dentro de si. “Crônicas de Bane” é o relato perfeito da vida de um personagem extremamente carismático e a escrita de Cassandra Clare nos faz sentir profundamente junto com ele, o bom e o ruim. Por mais que seja, tecnicamente, uma sequência da série “Os Instrumentos Mortais”, “Crônicas de Bane” pode ser lido como volume único, ou como porta de entrada para os outros livros, já que a construção de mundo e as políticas necessárias para se entender o universo são explicadas da melhor forma possível, e cativam tanto o leitor recém-chegado quanto o veterano.
Esta resenha faz parte da série Autores da Torre, do Projeto de extensão Torre de Babel, da Biblioteca José de Alencar (Faculdade de Letras/UFRJ)