Por Arthur Motta
“Gosto de Cereja”, de Abbas Kiarostami, é uma obra-prima cinematográfica que mergulha sua audiência em um abismo contemplativo, desafiando a narrativa convencional e ultrapassando os limites do cinema como forma de arte. Este trabalho visceral desafia fácil categorização, deixando os espectadores com uma impressão inapagável que perdura muito tempo após o término dos créditos.
A técnica narrativa audaciosa de Kiarostami, aliada à beleza austera da paisagem iraniana, cativa imediatamente os sentidos. O diretor elimina deliberadamente os excessos da narrativa tradicional, optando por uma abordagem minimalista que beira o vanguardista. O protagonista do filme, Sr. Badii, interpretado com intensidade assombrosa por Homayoun Ershadi, embarca em uma busca que é tanto metafísica quanto profundamente pessoal.
A premissa central gira em torno do desejo do Sr. Badii de encerrar sua própria vida, um tema que por si só diferencia esta produção do cinema mainstream. Kiarostami leva esse assunto angustiante e tece uma tapeçaria de indagação filosófica, convidando a audiência a confrontar seus próprios dilemas existenciais. O diretor evita habilmente o sensacionalismo, escolhendo um estilo contido e contemplativo que força os espectadores a se envolverem com as profundas questões levantadas pela narrativa.
O título do filme serve como uma metáfora para a vida em si. Kiarostami nos desafia a saborear a complexidade da existência, mesmo em seus momentos amargos. A cereja torna-se um símbolo da natureza efêmera de nossa jornada, nos tentando a refletir sobre a doçura transitória em meio às lutas inerentes à vida. É uma metáfora comovente que ressoa ao longo do filme, convidando a audiência a considerar o valor da vida diante de seu fim inevitável.
A cinematografia desta obra é nada menos que deslumbrante. O uso de longos planos e tomadas estáticas, combinado com a beleza natural da paisagem iraniana, cria uma poesia visual que é ao mesmo tempo, hipnotizante e onírica. A câmera torna-se uma companheira silenciosa na jornada do Sr. Badii, capturando a essência de sua solidão e angústia interior.
A ambiguidade da narrativa adiciona outra camada de intriga ao filme. Kiarostami se recusa a fornecer respostas fáceis, deixando a audiência lidar com a natureza enigmática da busca do Sr. Badii. Seria um grito por ajuda, uma rebelião contra as normas sociais ou uma exploração espiritual profunda? A recusa do filme em resolver essas questões de maneira simples desafia os espectadores a confrontarem seus próprios preconceitos e concepções.
Em conclusão, esta obra é um ousado testemunho da maestria cinematográfica de Abbas Kiarostami e seu comprometimento em ultrapassar os limites da narrativa. É um filme que exige envolvimento ativo de sua audiência, recompensando aqueles dispostos a se aprofundar em suas profundezas filosóficas. Com sua beleza assombrosa, abordagem minimalista e tema provocador, esta produção é uma experiência cinematográfica que transcende a tela, deixando uma marca permanente na alma.
Esta resenha faz parte da série Autores da Torre, do Projeto de extensão Torre de Babel, da Biblioteca José de Alencar (Faculdade de Letras/UFRJ)