Livro: “Não me abandone jamais”, Kazuo Ishiguro

Por Lilian Marinho

Em “Não me abandone jamais”, Kazuo Ishiguro tece uma crítica implícita ao egoísmo presente no contexto de Hailsham por meio da personagem Ruth, que mantém uma postura individualista visando apenas seus próprios interesses, o que nos leva à reflexão de que, não tão distante da distopia da obra, a inversão de valores e a maldade intrínseca do ser humano contribuem para a construção de indivíduos egocêntricos. A denúncia que se instala na ficção se mostra tão — ou mais — grave no contexto carioca, a partir do qual todos somos afetados. 

Nós nos acostumamos a nos preocupar apenas com os nossos próprios interesses, independentemente das consequências que isso pode gerar a todo o tecido social. Essa atitude foi chamada de cordialidade por Sérgio Buarque de Holanda, e consiste na atitude inata ou socialmente adquirida de nos aproveitarmos dos cargos ou recursos públicos como se pertencessem à nossa esfera particular. Infelizmente, essa característica típica do nosso povo, também conhecida como “jeitinho brasileiro”, a qual deveria ser chamada de egoísmo, teve seu valor crítico subvertido por toda a sociedade, o que fere o senso de coletividade e contribui para que se gere um círculo vicioso de atitudes antiéticas que, quanto mais nos acostumamos que aconteçam, mais elas se banalizam e voltam a acontecer. Dessa forma, enquanto formos cordiais, segundo o sentido dado por Holanda, seremos coniventes com ações individualistas, tal como Tommy e Kate, que permitiram que o individualismo fizesse parte do contexto de Hailsham. 

Ademais, a crítica do escritor brasileiro somada à necessidade do ser humano em sempre se sobrepor aos demais também é um fator que propicia o autocentrismo como algo intrínseco da nossa sociedade. Nesse sentido, na distopia de Kazuo Ishiguro, evidenciamos por meio da personagem Ruth o problema do egocentrismo e como esse demonstra a personificação da maldade humana definida por Hannah Arendt, como uma característica em que as atitudes cruéis passaram a fazer parte do cotidiano dos indivíduos, de modo que essa hostilidade se banalizou na sociedade. Analogamente, no contexto carioca, protagonizamos Ruths ao encararmos práticas deturpadas como algo normal e não escolhermos fazer uso da empatia, a fim de adormecer esse estado natural do ser humano: o egoísmo. Assim, não é razoável que nós mantenhamos uma postura apática que privilegia apenas nossa esfera particular e prejudica todo o corpo social. 

Devemos considerar, portanto, nossa responsabilidade por contribuirmos com a construção de pessoas egoístas quando a nossa omissão é maior do que a ética. Enquanto formos cordiais e permitirmos que a maldade humana continue a ser a regra, estaremos fadados a um tecido social moralmente corrompido que se preocupa apenas com os seus próprios interesses e subjugados a conviver em um contexto em que não vivemos como sociedade, mas que apenas mantém um paradoxo de indivíduos individualistas.  

Esta resenha faz parte da série Autores da Torre, do Projeto de extensão Torre de Babel, da Biblioteca José de Alencar (Faculdade de Letras/UFRJ) 

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