Mônica Silva dos Santos
Releituras na Quarentena
O primeiro romance de Toni Morrison (1931 – 2019), escritora afro-americana, narra histórias entrelaçadas e uma história central: a de uma menina negra que desejou trocar seus olhos escuros por olhos azuis. Olhos azuis apenas pelo encanto com a cor, pelo belo? Não só, convenhamos. Sim, olhos azuis são lindos! Entretanto, o desejo do azul vem com tudo aquilo que ele representa e muda.
Nesse querer que se torna busca, cabem diversas inscrições, leituras e consequências. Fica claro que aquilo que a imaturidade da infância não pode elaborar ou ressignificar, pode-se sentir — como as meninas Pecola, Claudia e suas irmãs evidenciam em seu agir.
Em sua língua de origem, a carga semântica do adjetivo presente no título da obra¹ pode abrir polissemias de leitura (ou ambiguidades) . Em inglês, nem sempre blue quer dizer, simplesmente, azul . Em determinadas construções, esse vocábulo remete a um certo sentimento de tristeza ou melancolia e funciona como sinônimo. Para complicar um pouco mais, blue pode significar bem mais do que tristeza em expressões idiomáticas, enfim. A escolha pela tradução literal pode não ter permitido ao leitor brasileiro a comunicação das possibilidades presentes no título da obra. Pelo fato de blue ser uma palavra muito versátil em seus usos, não sei dizer se o tradutor poderia ( ou deveria) ter utilizado outra estratégia ― o contexto é complexo. Contudo, a leitura do todo pode vir a resolver as implicações da transposição cultural; e o conhecimento da multifuncionalidade do vocábulo também ajuda.
Eu costumo relacionar a expressão bluest eye escolhida por Morrison com a noção de olhos d’água literariamente lapidada e trabalhada por Conceição Evaristo em seu conto que intitula um de seus livros. Há diferenças sim, não nego ― não são inteiramente iguais em seus contextos ―; mas eu identifico oportunidade de diálogo e aproximação entre essas duas expressões. Em minha análise, teço relações; e em minha liberdade, ressalto um detalhe a mais, não é só blue: é bluest.
Voltando à memória aos detalhes da obra, relembro que trago vivas em meu palco ou tela mental algumas das cenas que se formaram enquanto eu lia o livro. São muitas! Para não afetar o encontro do texto com aquele que lê, citarei apenas uma passagem. Como é bastante difícil selecionar apenas um trecho, tentei escolher um que comprometesse menos o efeito surpresa e levei em consideração aquilo que eu mesma já adiantei aqui.
Toda noite, sem falta, ela rezava para ter olhos azuis. Fazia um ano
que rezava fervorosamente. Embora um tanto desanimada, não tinha
perdido a esperança. Levaria muito, muito tempo para que uma coisa
maravilhosa como aquela acontecesse.
Lançada dessa maneira na convicção de que só um milagre poderia
socorrê-la, ela jamais conheceria a própria beleza. Veria apenas o
que havia para ver: os olhos das outras pessoas ( MORRISON, 2019, p. 50).
A narrativa é marcante e feita de uma mescla de estilos primorosos que parecem transbordar intencionalidades várias em sua articulação. Toni Morrison leva para seu texto escrito traços da oralidade e ― já na abertura da obra ― brinca com as noções de escrita e de estrutura textual. No decorrer do texto, o leitor se depara com entradas de trechos ― que em sua forma eu diria ser um tipo de parágrafo com valor de epíteto ― de uma escrita espremida e com palavras fragmentadas; em poucas palavras: com uma estrutura textual desconfigurada. Escolhas que podem comunicar bem mais do que uma brincadeira.
Nas estações de O olho mais azul , a autora une a voz e a perspectiva narrativa de Claudia ao protagonismo do relato de um narrador onisciente e a outras vozes. Sua escrita destaca, dentro de uma dimensão coletiva e lírica, muitas existências de um ethos em diáspora. Eu ouso dizer que este não é um livro para cultivar inocências, mas para engasgar com aspectos da vida e da história dos negros norte-americanos, em especial de mulheres-meninas. Leitores interessados em história, sociologia, psicologia, humanidades em geral e literaturas ( claro) não se decepcionarão!
REFERÊNCIAS
MORRISON, Toni. O olho mais azul. Tradução Manoel Paulo Ferreira. 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
¹ Título original: The Bluest Eye.
Disponível na Biblioteca José de Alencar o título em inglês: Morrison, Toni, 1931-2019. The bluest eye – 813.5 M882b