Poesia de Carlos de Assumpção

Por Vitória Mencia

Esta resenha irá tratar sobre a poesia do poeta Carlos de Assumpção. A autora desse texto teve o primeiro contato com Carlos de Assumpção e com sua poesia durante as aulas de teoria literária III, na faculdade de Letras da UFRJ, ministradas pelo professor Alberto Pucheu. E ela ficou impressionada com o seu fazer poético, com a forma como o poeta enxerga a poesia e muito abismada por não conhecer sua poesia antes, pois depois que entrou em contato com sua obra, seu modo de pensar a poesia mudou drasticamente, pois o poeta Carlos de Assumpção trata a poesia como uma forma de resistência, como uma arma para lutar contra o racismo e também para acabar com o fascismo que, além de estar presente na sociedade, está presente na própria língua, como diz Roland Barthes: “a língua é fascista”. Durante uma aula de poesia portuguesa, a professora Sofia Maria de Sousa Silva, do departamento de Letras Vernáculas dessa universidade, disse que só reconhecemos o canto do pássaro, como canto do pássaro, porque tem um termo que o significa dessa forma. Senão, o canto não seria canto. O que ouviríamos seria apenas um ruído. Dessa maneira, a língua acaba nos limitando sobre o que devemos dizer e como devemos dizer. 

O poeta Carlos de Assumpção nasceu em 1927 no município de Marília, em São Paulo. Em 1969, mudou-se para Franca, interior de São Paulo, onde reside até hoje. Apenas a mãe do poeta era alfabetizada, ela tinha um amor muito grande pela leitura. O autor Carlos de Assumpção considera sua poesia como forma de intervenção social, como um ato de resistência, uma poesia engajada, com uma estrutura simples, mas com o conteúdo complexo, uma luta social, um ato político: “A minha poesia é cascuda, não tem firula”. É uma poesia de combate, uma forma de resistência e uma arma para lutar contra as desigualdades, em especial, o racismo, presente no país. O poema mais conhecido do poeta é “O protesto”. O poema foi feito em 1956, ele não escreveu o poema todo de uma vez, mas demorou dez dias para finalizá-lo. O poema chegou até Roma através de Geraldo Campos, este que dava muitas oportunidades para Carlos de Assunção recitar o poema. O poema também foi citado no Senado por Paulo Paim. A primeira vez que o poeta recitou o poema foi na associação cultural do negro e, embora a poesia de Carlos de Assumpção tenha esse caráter político, o poeta em si não tinha nenhum lado político. Não se considerava nem de esquerda, nem de direita, pois para ele político nenhum representava o povo, e muito menos o povo negro.

Para o poeta, é importante que as pessoas, o povo, compreendam o que ele está dizendo, se trata de uma poesia feita para todos e não necessariamente para aqueles que já tenham um ensino superior, ou para quem tenha conhecimento profundo em literatura, gramática e poética. Trata-se de uma poesia clara, que fala abertamente para o povo, para que todos possam compreender. O poeta Carlos de Assumpção é precursor do SLAM, uma competição de poesia falada, na qual os temas são livres e os poetas têm liberdade para expressar através da poesia tudo o que pensam e lutar por aquilo em que acreditam. A oralidade está muito presente na poesia de Carlos de Assumpção e o poeta recita seus poemas de cor por ser algo que já faz parte da vida do poeta e não há como separá-los. O poeta usa perguntas em sua poesia, no poema “O protesto”, por exemplo, ele diz: quem está gritando? Desse modo, o poeta se aproxima mais do interlocutor, é uma forma de interagir com aquele que está lendo, tornando-se, dessa forma, mais próximo do leitor. O avô do poeta Carlos de Assumpção, conhecido como Cirilo carroceiro, só não se tornou escravo porque foi alcançado pela lei do ventre livre. Seu Carlos diz que, quando ele era criança, seu avô reunia ele e seus irmãos em volta da fogueira para contar o que ele vivenciou durante a escravidão, eram diversas histórias que seu avô viveu e não apenas ouviu. Seu Carlos conta que teve uma vez que o seu irmão estava em uma aula na qual a professora estava ensinando sobre a escravidão e o seu irmão a interrompeu, pois estava divergindo do que seu avô havia lhe contado. Pois a vivência, a experiência, tem um efeito maior do que a teoria descrita apenas em livros didáticos, teorias escritas por pessoas que não têm nenhum tipo de relação com aquilo que estão escrevendo.

O termo protesto tem origem latina, pro testari, pro testis, o que significa dar testemunho. E realmente o poema protesto se trata de um testemunho não só do poeta Carlos de Assumpção, mas também do seu avô, e de todos os que sofreram, perderam suas vidas e sua identidade durante a escravidão, e não somente pelos que já foram, mas pelos que estão aqui e pelos que ainda virão, pois um dos versos do protesto e o título do seu último livro que reúne a sua obra completa é: não pararei de gritar. É algo que irá se perpetuar, é um grito que não irá cessar. O poema “O protesto” tem um caráter circular, um eu comunitário, histórico, um grito coletivo, se refere aos enjeitados da pátria, ou seja, aqueles que constroem a pátria, mas são excluídos de qualquer bem-estar social e também faz uma crítica à razão negra.  Partilha de um grito guardado na memória coletiva, ele traz para o poema aquele que não conhece a história do grito – um poema pedagógico –”Eu preciso ensinar essa história para quem desconhece”, diz o poeta. Um poema histórico, um poema de combate – para responder às perguntas, ele precisa chamar o interlocutor mais para perto. 

O vocativo “meu irmão” usado pelo poeta está convocando os leitores para se juntar a ele, se juntar na mesma luta, na mesma missão. Chamar o interlocutor de irmão é uma forma de estar mais próximo do leitor. Outrossim, é uma forma de fazer com que o leitor se sinta mais próximo do poema, cria um laço de intimidade com o poema e com o sujeito poético. Logo na primeira estrofe do poema “O protesto”, é dito “mesmo que volte as costas minhas palavras de fogo, eu não pararei de gritar”. Assim, o poeta está dizendo que, mesmo que ele seja castigado, condenado por estar protestando através da sua poesia, ele não vai parar de gritar. Ou seja, ele não vai deixar de lutar, de combater, de intervir na sociedade por meio de sua poética. E o autor prossegue dizendo que foi enviado para protestar, para testemunhar, para relatar, para denunciar todas as injustiças que não somente ele sofreu, mas também o seu avô, todos os seus antepassados e todos os seus irmãos que sofreram atrocidades, foram maltratados e perderam suas vidas sem poder questionar. E o poeta Carlos de Assumpção estaria agindo como o porta-voz de todo o seu povo, de todos os seus “irmãos” e não somente pelos que já se foram, mas pelos que continuam entre nós e os que ainda hão de vir. O poeta diz que seus ancestrais, sem que ninguém perceba, se reúnem em sua casa a conversar sobre tudo o que já aconteceu. 

Assim, todas as dores, o sofrimento, as aflições de todos os que já se foram são refletidas em sua poesia. Seu Carlos está representando todos os que já não estão aqui, ele diz que o sangue dos seus avós está em sua veia. Ele escreve não só por ele, ele escreve representando o coletivo. Há um nós embutido atrás do eu, o poeta está representando o seu povo, os seus antepassados e os seus “irmãos”, a quem a maioria não conhece, mas ele sabe que passou, passa e irá passar (enquanto a sociedade não mudar) pelos sofrimentos e as aflições. O poeta faz uma crítica em relação à forma em que aconteceu a libertação dos escravos, à forma que aconteceu a abolição. 

Assim, no filme feito pelo professor e ensaísta Alberto Pucheu, o poeta diz que a princesa Isabel passou cheque sem fundo. E no protesto ele diz “foi um cavalo de troia a liberdade que me deram, haviam serpentes futuras”. Ou seja, houve a abolição, mas e depois? Os escravos não tinham para onde ir, o que iriam fazer? Eles não foram de fato livres, mas continuaram “escravos”, só que dessa vez com uma carta de alforria, esta que não resolveu a situação. E é exatamente essa revolta que o poeta expressa no poema. O seu Carlos não viveu durante a escravidão, mas ele traz consigo as histórias de todos os seus antepassados que passaram por ela. O poeta diz: “Mas hoje o meu grito não é / pelo o que já passou/ Que se passou é passado / O meu coração já perdoou / hoje grito meu irmão/ É porque depois de tudo / A justiça não chegou”. O poeta diz que o seu grito não é mais pelo que já aconteceu, mas sim porque, mesmo depois de tudo o que aconteceu, a justiça não chegou, os episódios continuam se repetindo. Outrossim, há no poema “O protesto” um encontro do passado e do futuro, por meio do presente que é o seu Carlos. O passado seria aqueles que sofreram durante a escravidão e o futuro seria aqueles que sofrem por conta do racismo, preconceito e perseguição que ainda acontece. É possível perceber esse encontro de tempos nos versos “irmão tu me desconheces / Sou eu aquele que se tornara vítima dos homens”. Então, os antepassados de Carlos de Assumpção estariam se apresentando para o leitor que se encontraria na mesma situação, por meio de sua poesia.

  Protesto        

Mesmo que voltem as costas

Às minhas palavras de fogo

Não pararei de gritar

Não pararei

Não pararei de gritar

Senhores

Eu fui enviado ao mundo

Para protestar

Mentiras ouropéis nada

Nada me fará calar

Senhores

Atrás do muro da noite

Sem que ninguém o perceba

Muitos dos meus ancestrais

Já mortos há muito tempo

Reúnem-se em minha casa

E nos pomos a conversar

Sobre coisas amargas

Sobre grilhões e correntes

Que no passado eram visíveis

Sobre grilhões e correntes

Que no presente são invisíveis

Invisíveis, mas existentes

Nos braços no pensamento

Nos passos nos sonhos na vida

De cada um dos que vivem

Juntos comigo enjeitados da Pátria

 Senhores

O sangue dos meus avós

Que corre nas minhas veias

São gritos de rebeldia

Um dia talvez alguém perguntará

Comovido ante meu sofrimento

Quem é que está gritando

Quem é que lamenta assim

Quem é

E eu responderei

Sou eu irmão

Irmão tu me desconheces

Sou eu aquele que se tornara

Vítima dos homens

Sou eu aquele que sendo homem

Foi vendido pelos homens

Em leilões em praça pública

Que foi vendido ou trocado

Como instrumento qualquer

Sou eu aquele que plantara

Os canaviais e cafezais

E os regou com suor e sangue

Aquele que sustentou

Sobre os ombros negros e fortes

O progresso do País

O que sofrera mil torturas

O que chorara inutilmente

O que dera tudo o que tinha

E hoje em dia não tem nada

Mas hoje grito não é

Pelo que já se passou

Que se passou é passado

Meu coração já perdoou

Hoje grito meu irmão

É porque depois de tudo

A justiça não chegou

Sou eu quem grita sou eu

O enganado no passado

Preterido no presente

Sou eu quem grita sou eu

Sou eu meu irmão aquele

Que viveu na prisão

Que trabalhou na prisão

Que sofreu na prisão

Para que fosse construído

O alicerce da nação 

O alicerce da nação

Tem as pedras dos meus braços

Tem a cal das minhas lágrimas

Por isso a nação é triste

É muito grande mas triste

E entre tanta gente triste

Irmão sou eu o mais triste

A minha história é contada

Com tintas de amargura

Um dia sob ovações e rosas de alegria

Jogaram-me de repente

Da prisão em que me achava

Para uma prisão mais ampla

Foi um cavalo de Troia

A liberdade que me deram

Havia serpentes futuras

Sob o manto do entusiasmo

Um dia jogaram-me de repente

Como bagaços de cana

Como palhas de café

Como coisa imprestável

Que não servia mais pra nada

Um dia jogaram-me de repente

Nas sarjetas da rua do desamparo

Sob ovações e rosas de alegria

Sempre sonhara com a liberdade

Mas a liberdade que me deram

Foi mais ilusão que liberdade

Irmão sou eu quem grita

Eu tenho fortes razões

Irmão sou eu quem grita

Tenho mais necessidade

De gritar que de respirar

Mas irmão fica sabendo

Piedade não é o que eu quero

Piedade não me interessa

Os fracos pedem piedade

Eu quero coisa melhor

Eu não quero mais viver

No porão da sociedade

Não quero ser marginal

Quero entrar em toda parte

Quero ser bem recebido

Basta de humilhações

Minh’alma já está cansada

Eu quero o sol que é de todos

Quero a vida que é de todos

Ou alcanço tudo o que eu quero

Ou gritarei a noite inteira

Como gritam os vulcões

Como gritam os vendavais

Como grita o mar

E nem a morte terá força

Para me fazer calar.

_ Carlos de Assumpção

O fazer poético de Carlos De Assumpção, a forma como ele enxerga a poesia, o lugar que a poesia ocupa em sua vida, se assemelha com a forma que o poeta português Ruy Belo enxerga a poesia. Ruy Belo foi um ensaísta português de pós-guerra que viveu durante o regime Salazarista sob o regime Salazar. Para Ruy Belo, a poesia ganha forma no momento em que ela devia desaparecer. Assim, para o poeta português, a poesia é uma forma de intervir em uma situação de modo que contribua para a realização de algo.

“Mas é desse lugar de desaparecimento que a poesia ganha sua potência, em especial, a poesia Ruy Belo. É exatamente no momento em que se espere que ela se retire de cena que, que faz necessário recolocá-la no  centro e no extremo  do mundo”.  ( Belo, 1973, p.8)

Desse modo, a poesia foi um instrumento para lutar contra a repressão da época e também dar cor e sentido para um mundo que estava tão cinza. Dar vida para uma alma que estava falecendo aos poucos por conta da repressão. Assim, de acordo com Ruy Belo, a poesia seria uma forma de reagir, de lutar, de resistir a toda essa repressão, à ditadura que predominava. Dessa forma, a poesia se tornou uma maneira de viver e não somente sobreviver. A poesia seria capaz de iluminar uma alma que estava sem vida, seria uma válvula de escape para não perder a sua alma, a sua consciência por causa da ditadura ( O salazarismo) que havia se instaurado na época.

 “Assim, ganhamos a poesia que vem como lâmina, corte, instrumento de uma ética, de estar no mundo, de uma inovação. Uma arma poderosa, reativa à idiotização da vida, à ignorância dos homens, do esfacelamento da pátria , lugar , Portugal, Brasil, onde for (…)”  ( BELO, 1973, p 8,9)

Assim, há uma semelhança entre os dois poetas em relação ao fazer poético e à forma de pensar a poesia, pois ambos lidam com a poesia como se fosse uma arma para combater alguma injustiça, enxergam a poesia como uma forma de intervir na sociedade. Dessa maneira, os dois veem na poesia um sentido para viver. O poeta Carlos de Assumpção disse a respeito da poesia: “Eu dou a vida por isso”. Os dois veem na arte uma forma de resistência. No entanto, a causa da luta dos poetas se difere, mas o objetivo pelo qual os levam a escrever se assemelha, pois ambos escrevem na tentativa de alertar o povo sobre o que está acontecendo com eles, sobre o que está acontecendo em sua volta, sobre o que acontece na sociedade. Os dois lutam por um país possível, um país melhor. 

REFERÊNCIAS 

ASSUMPÇÃO, Carlos. Não pararei de gritar: Poemas reunidos. Rio de Janeiro; Companhia das Letras, 2020.

BELO, Ruy de Moura Ribeiro. País Possível. Roma: Assírio & Alvim,1973.

Esta resenha faz parte da série Autores da Torre, do Projeto de extensão Torre de Babel, da Biblioteca José de Alencar (Faculdade de Letras/UFRJ)


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