As confissões de Charlie – por Vitória Valentim

Releituras na Quarentena

As Vantagens de Ser Invisível é o livro de estreia do escritor norte-americano Stephen Chbosky e traduzido por Ryta Vinagre. Publicado em 1999 pela Pocket Books, chega ao brasil em 2007 pela Editora Rocco e é transformado em filme homônimo em 2012, estrelando Logan Lerman, Emma Watson e Ezra Miller no elenco principal. O livro entra no gênero de romance epistolar; conhecemos o personagem principal, o peculiar e solitário Charlie, através de suas cartas que soam como uma confissão a um destinatário desconhecido.

O livro nos coloca diante de temas tão comuns e necessários que nos atravessam durante a adolescência e nos leva do primeiro amor até sentimentos destrutivos em um piscar de olhos. Em suas quatro partes e epílogo, percorremos o primeiro ano de seu ensino médio, aprendemos muito sobre suas ânsias, desejos, traumas e sonhos. É uma viagem iniciada em 25 de agosto de 1991 e que encontra seu fim no dia 23 de agosto de 1992 e nela presenciamos o seu amadurecimento, tanto como pessoa e escritor em formação. Nesse meio tempo, ele nos introduz a sua vida como se fossemos melhores amigos desde sempre.

Amizade é, de fato, um dos temas principais deste livro. Cada carta começa com um “querido amigo” e, no início, Charlie tem a expectativa de encontrar alguém que o escute, que o compreenda, que o enxergue e, no entanto, ele tenta omitir nomes reais na tentativa de anuviar o que sabemos sobre ele, para não descobrirmos quem ele é de verdade. Mas Charlie é transparente, ele “fala da mesma maneira que escreve”. E essa fluidez e honestidade é o que mais me conquistou na história.

Na carta de abertura do livro, Charlie, de apenas 15 anos, relata o suicídio de seu melhor amigo, Michael, que pega a todos, mas a Charlie principalmente, de surpresa. Em um momento específico, o jovem enlutado lembra de ter gritado com o orientador, dizendo que Michael não deveria ter passado por supostos problemas sozinho, seu melhor amigo poderia ter conversado com ele. Charlie queria alguma explicação de seu amigo, assim “a dor poderia fazer sentido”. Hoje entendo que, nesse momento, Charlie gostaria de ter visto e compreendido seu melhor amigo e, talvez, nesse momento, ele gostaria de ter tido o mesmo papel que o seu “querido amigo” de todas as cartas na vida de Michael.

Nas cartas iniciais, Chbosky já nos introduz a toda base familiar do jovem escritor e seus traços de personalidade: seu pai trabalhava duro, era mais frio e realista; sua mãe era a tradicional dona de casa, fazia dietas de revista, cuidava dos filhos e quase sempre tinha a última palavra; sua irmã era muito bonita e má com os meninos, mas cultivava relações românticas complicadas ao longo do livro; seu irmão não era tão próximo quanto sua irmã, havia saído de casa graças a uma bolsa de atleta na faculdade de Penn State e todos tinham muito orgulho dele; e, por fim, a tia Helen, a pessoa que Charlie mais gostava no mundo, marcada por acontecimentos trágicos em sua vida e que é, comumente descrita, como uma pessoa doce e triste. A amizade entre Charlie e sua tia assume outras características no desenrolar do livro, mas nada de spoilers por aqui!

A solidão de Charlie é atenuada ao conhecer Patrick e sua meia-irmã, Sam, por quem o garoto se apaixona logo de cara. Pouco tempo depois desse primeiro encontro com Sam, o jovem descobre o desejo. Apesar de já ter visto cenas explícitas antes, algo que relata nas páginas iniciais, a sensação de atração lhe era desconhecida até então. Mas Charlie sente vergonha de ter desejado e sonhado com Sam, alguns anos mais velha, e conta pra ela assim que a reencontra, como maneira de se livrar do peso do seu subconsciente. Esse jeito transparente e até mesmo inocente de lidar com as coisas pode passar batido como ingenuidade de adolescente, mas nessa minha releitura da quarentena, alguns anos depois de ter lido o livro pela primeira vez, esse momento me pareceu também como uma confissão. Charlie, ao longo do livro, busca amenizar sensações variadas de diversas maneiras; seja através da honestidade, escrita ou com uso de drogas, as duas primeiras funcionando como forma de cura e, a última, como escape.

“Quando terminei de ler o poema, todos estavam em silêncio. Um silêncio muito triste. Mas a coisa maravilhosa foi que não era uma tristeza ruim. Era só alguma coisa que fazia com que todos olhassem para os outros e soubessem quem eles eram. Sam e Patrick olharam para mim. E eu olhei para eles. E acho que eles sabiam. Não alguma coisa específica. Apenas sabiam. E eu acho que é tudo o que você pode pedir de um amigo.”

É claro que uma resenha só não consegue (e nem deve) dar conta de todos os detalhes e temas de um livro de 223 páginas, com o retrato de um ano quase completo de um adolescente no primeiro ano do ensino médio e com uma bagagem tão delicada quanto Charlie e não só a história dele, cada personagem é relatado com tanta dimensionalidade que cada um poderia ter um capítulo para si mesmo. No entanto, isso quebraria a maneira da escrita deste livro. Há coisas que somente a experiência de uma leitura é capaz de proporcionar. Por exemplo, a maneira como a escrita de Charlie muda, fica mais rápida e com um intervalo menor entre as frases quando ele está mentalmente instável. Ou como o livro trata o amor e as tantas formas de auto sabotagem das personagens, afinal, ele nos ensina que “nós aceitamos o amor que achamos merecer”.

Na primeira vez que o li, estava no segundo ano do ensino médio, uns 2 anos mais velha que Charlie, mas completamente imersa na vivência do personagem em alguns aspectos, porque era a minha também. Foi, sem dúvidas, o livro que mais mexeu comigo na adolescência. É um livro extremamente visual, a escrita de Stephen — com um quê de autobiográfica — nos transporta para o quarto de Charlie, para os corredores do seu colégio, para as festas, para o túnel. Charlie me apresentou novos livros, novas músicas e novas perspectivas. Hoje, já próxima do fim da faculdade, vejo como Charlie me serviu como amigo. Seu “querido amigo” era para ser somente o leitor, no entanto, com o passar das páginas, sua lealdade e afetos me impactavam como se fossemos ligados de verdade. Ao longo do livro, como já dito, o amadurecimento dele é nítido, no entanto, sempre ao terminar de lê-lo, sinto que cresci junto.

Acredito que a vantagem de ser invisível, ou melhor, as vantagens, seja refletida na frase que Patrick utiliza para elogiar Charlie: “Você vê as coisas. Você guarda silêncio sobre elas. E você compreende.” Boa parte dessa vantagem é oriunda da existência como uma pessoa “estranha” ou simplesmente tímida; e a partir disso, valorizar a presença das pessoas ao nosso redor, valorizar a sensação de ser aceito e compreendido. A vida não para pra ninguém e, o que nos resta, é participarmos.



Meu querido amigo Charlie,

obrigada por ter me ensinado tanto e por ser infinito.

Com amor,

Vitória.

1 thoughts on “As confissões de Charlie – por Vitória Valentim”

  1. que linda essa reflexão, charlie é como um amigo invisivel de todos nós. Acho que desejariamos conhecer ele um dia, mas as vezes vale o benefício da invisibilidade 🙂

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *