Por Anne Poly
O livro “Torto arado”, de Itamar Vieira Júnior, esteve na minha lista de desejos por bons meses. Acredito que todo leitor fascinado pela literatura contemporânea brasileira teve o interesse aguçado pela obra nos últimos tempos. Mais de 450 mil exemplares já foram vendidos, isso sem contar com os dados atualizados, uma vez que a Bienal do Rio alavancou ainda mais as vendas.
Para quem gosta de uma boa história de família, a leitura é uma ótima pedida. Só que Itamar não para por aí: a narrativa te leva a sentir na pele o sofrimento das gerações posteriores à abolição da escravatura. Acompanhar o cotidiano das pessoas “livres” é angustiante, mas necessário.
Bibiana e Belonísia são as protagonistas do enredo, mulheres pretas e descendentes de escravos. O livro é dividido em três partes, sendo quase integralmente narrado pelas irmãs. As duas vivem um trauma abrupto logo na infância, e precisam encarar as consequências da curiosidade infantil pelo resto das suas vidas.
A família e os vizinhos das personagens principais também têm sua força: Donana, Zeca Chapéu Grande, Salustiana, Miúda e por aí vai. O autor oferece um prato cheio de figuras complexas, sofridas e fortes. Itamar, como bom pesquisador, retrata o contexto histórico daqueles que se viram livres da escravidão, mas apenas em partes. Fazendeiros permitiam que pessoas pretas e indígenas habitassem suas terras em troca de trabalho não remunerado nas plantações, sete dias por semana. Uma escravidão velada.
Além disso, as religiões de matriz africana são fortemente representadas na obra, principalmente por Zeca, que mencionei há pouco, pai das protagonistas. Ele é o curandeiro de Água Negra, povoado fictício localizado no interior da Bahia. Responsável pelas questões espirituais do povo, o personagem também é uma espécie de representante político dos vizinhos.
Não quero dar spoilers, mas um acontecimento de “Torto arado” merece entrar nesta resenha: com o passar dos anos, das décadas, a população sentiu uma revolta cada vez maior e foi tomada pelo desejo de mudança. Com o tempo, deixaram de aceitar as determinações dos seus “chefes”, como, por exemplo, a proibição da construção de casas de alvenaria. Só era possível construir moradias temporárias com barro.
Sei que o povo preto ainda passa por uma libertação gradual, e acredito que cada passo dado adiante merece reconhecimento e honra. O autor foi genial ao não finalizar a narrativa com a manutenção da realidade abusiva entre trabalhadores e proprietários de terras. É possível olhar para o horizonte e encontrar esperança por dias melhores.
Esta resenha faz parte da série Autores da Torre, do Projeto de extensão Torre de Babel, da Biblioteca José de Alencar (Faculdade de Letras/UFRJ)